15 de setembro de 1933 - Parabéns Rubem Alves

Tenho um carinho enorme por Rubem Alves. Ele transformou minha trajetória docente.

 

Com uma fala provocadora, consolidou meus pensamentos sobre educação, permitindo que eu passasse a ter esperança de que era possível fazer diferente.

 

Ele me fez perceber que não estava todo mundo certo e eu errada. Que padronizar as crianças com aulas, apostilas e provas era realmente sem sentido. E que construir uma educação humanizada, que respeitasse o tempo e as diferenças de cada aluno, era possível.

 

Hoje ele faria aniversário e para comemorar, darei de presente alguns trechos de livros do Rubem Alves: Pinóquio às avessas”, a trilogia “Para quem gosta de ensinar”, e para terminar, um dos textos mais inspiradores: “Gaiolas e asas”.

 

“– [...] Quem foi que colocou em fila as coisas que devo aprender?

– Quem põe os conhecimentos em fila são pessoas muito inteligentes, do governo.

– E como é que eles sabem o que quero aprender se não me conhecem e moram longe de mim?

  A escola não é para você aprender aquilo que você quer aprender – disse a professora. – A escola é para você aprender aquilo que você deve aprender. O que você deve aprender é aquilo que disseram os homens inteligentes do governo. Tudo na ordem certa. Uma coisa de cada vez. Todas as crianças ao mesmo tempo. Na mesma velocidade...”

 

“O que é imediatamente experimentado não precisa ser ensinado nem repetido para ser memorizado. Um choque elétrico, o calor da chama, o gosto bom do figo em caldas e catupiri que o Drummond tanto aprecia – aprendizagem imediata. Quanto mais separado da experiência um determinado conteúdo, maiores e mais complicadas as mediações verbais. Acontece que, com frequência, se processa uma separação definitiva entre o falado e o vivido, e a ciência se torna um jogo de conceitos: uma caricatura grotesca do jogo das contas de vidro do mundo da Castália, da novela de Hesse.”

 

“A lagarta deve desaparecer para que a borboleta nasça”

 

“Que me deem uma boa razão para que os jovens se apaixonem pela ciência. Sem isto, a parafernália educacional permanecerá flácida e impotente. Porque sem uma grande paixão não existe conhecimento."

 

Há um tipo de inteligência criadora. Ela inventa o novo e introduz no mundo algo que não existia. Quem inventa não pode ter medo de errar, pois vai se meter em terras desconhecidas, ainda não mapeadas. Há um rompimento com velhas rotinas, o abandono de maneiras de fazer e pensar que a tradição cristaliza.”

 

“É preciso não esquecer o sonho, pois, se ele for esquecido, o sofrimento de aprender se torna sem sentido.

Todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardins por dentro não planta jardins por fora. E nem passeia por eles...”

 

“E eu gostaria, então, que os nossos currículos fossem parecidos com a “Banda”, que faz todo mundo marchar sem mandar, simplesmente por falar as coisas do amor. Mas onde, nos nossos currículos, estão estas coisas de amor? Gostaria que eles se organizassem nas linhas do prazer: que falassem das coisas belas, que ensinassem física com as estrelas, pipas, os piões e as bolinhas de gude, a química com a culinária, a biologia com as hortas e os aquários, política com o jogo de xadrez, que houvesse a história cômica dos heróis, as crônicas dos erros dos cientistas, e que o prazer e suas técnicas fossem objeto de muita meditação e experimentação… Enquanto a sociedade feliz não chega, que haja pelo menos fragmentos de futuro em que a alegria é servida como sacramento, para que as crianças aprendam que o mundo pode ser diferente: que a escola, ela mesma, seja um fragmento de futuro…”

 

Basta contemplar os olhos amedrontados das crianças e os seus rostos cheios de ansiedade para compreender que a escola lhes traz sofrimento. O meu palpite é que, se se fizer uma pesquisa entre as crianças e os adolescentes sobre as suas experiências de alegria na escola, eles terão muito que falar sobre a amizade e o companheirismo entre eles, mas pouquíssimas serão as referências à alegria de estudar, compreender e aprender.”

 

“Não me espanto, portanto, que tenha aprendido tão pouco na escola. O que aprendi foi fora dela e contra ela. Jorge Luís Borges passou por experiência semelhante. Declarou que estudou a vida inteira, menos nos anos em que esteve na escola. Era, de fato, difícil amar as disciplinas representadas por rostos e vozes que não queriam ser amados.

[...] Concordo com Paul Goodmann na sua afirmação de que a maioria dos estudantes nos colégios e universidades não deseja estar lá. Eles estão lá porque são obrigados.

Os métodos clássicos de tortura escolar como a palmatória e a vara já foram abolidos. Mas poderá haver sofrimento maior para uma criança ou um adolescente que ser forçado a mover-se numa floresta de informações que ele não consegue compreender, e que nenhuma relação parecem ter com sua vida?

Compreende-se que, com o passar do tempo a inteligência se encolha por medo e horror diante dos desafios intelectuais., e que o aluno passe a se considerar como um burro. Quando a verdade é outra: a sua inteligência foi intimidada pelos professores e, por isto, ficou paralisada.”

 

“Acho que esta brincadeira é uma repetição do que acontece nas escolas. As crianças são ensinadas. Aprendem bem. Tão bem que se tornam incapazes de pensar coisas diferentes. Tornam-se ecos das receitas ensinadas e aprendidas. Tornam-se incapazes de dizer o diferente. Se existe uma forma certa de pensar as coisas e de fazer as coisas, por que se dar o trabalho de se meter por caminhos-não-explorados? Basta repetir aquilo que a tradição sedimentou e que a escola ensinou. O saber sedimentado nos poupa dos riscos da aventura de pensar.

Não, não sou contrário a que se ensinem receitas já testadas. Se existe um jeito fácil e rápido de amarrar os cordões dos sapatos, não vejo razão para submeter o aluno às dores de inventar um jeito diferente. Se existe um jeito já testado e gostoso de fazer moqueca, não vejo razões por que cada cozinheiro se sinta na obrigação de estar sempre inventando receitas novas. O saber já testado tem uma função econômica: a de poupar trabalho, a de evitar erros, a de tornar desnecessário o pensamento. Assim, aprende-se para não precisar pensar. Sabendo-se a receita, basta aplicá-la quando surge a ocasião.”

 

“Acho que a educação frequentemente cria antas: pessoas que não se atrevem a sair das trilhas aprendidas, por medo da onça. De suas trilhas sabem tudo, os mínimos detalhes, especialistas. Mas o resto da floresta permanece desconhecido. Pela vida afora vão brincando de ‘Boca de Forno’...”

 

“Minha filha me fez uma pergunta: “O que é pensar?” Disse-me que ‘esta era uma pergunta que o professor de filosofia havia proposto à classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro por ter ido diretamente à questão essencial. Segundo, por ter tido a sabedoria de fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque, se tivesse dado a resposta, teria com ela cortado as asas do pensamento. O pensamento é como a águia que só alça vôo nos espaços vazios do desconhecido. Pensar é voar sobre o que não se sabe. Não existe nada mais fatal para o pensamento que o ensino das respostas certas. Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido.”

 

“A tarefa primordial do professor: seduzir o aluno para que ele deseje e, desejando, aprenda.”

“Mas, para esta aventura meus mapas não lhe bastam. Todos os diplomas são inúteis. E inútil todo o saber aprendido. Você terá de navegar dispondo de uma coisa apenas: os seus sonhos. Os sonhos são os mapas dos navegantes que procuram novos mundos. Na busca dos seus sonhos você terá de construir um novo saber, que eu mesmo não sei… E os seus pensamentos terão de ser outros, diferentes daqueles que você agora tem.

O seu saber é um pássaro engaiolado, que pula de poleiro a poleiro, e que você leva para onde quer. Mas dos sonhos saem pássaros selvagens, que nenhuma educação pode domesticar.”

 


Gaiolas e asas

Os pensamentos me chegam de forma inesperada, sob a forma de aforismos. Fico feliz porque sei que Lichtenberg, William Blake e Nietzsche frequentemente eram também atacados por eles. Digo “atacados” porque eles surgem repentinamente, sem preparo, com a força de um raio. Aforismos são visões: fazem ver, sem explicar. Pois ontem, de repente, esse aforismo me atacou: “Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas”.
Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-las para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo.

Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são os pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.

Esse simples aforismo nasceu de um sofrimento: sofri conversando com professoras de segundo grau, em escolas de periferia. O que elas contam são relatos de horror e medo. Balbúrdia, gritaria, desrespeito, ofensas, ameaças… E elas, timidamente, pedindo silêncio, tentando fazer as coisas que a burocracia determina que sejam feitas, como dar o programa, fazer avaliações… Ouvindo os seus relatos, vi uma jaula cheia de tigres famintos, dentes arreganhados, garras à mostra e a domadoras com seus chicotes, fazendo ameaças fracas demais para a força dos tigres.

Sentir alegria ao sair de casa para ir à escola? Ter prazer em ensinar? Amar os alunos? O sonho é livrar-se de tudo aquilo. Mas não podem. A porta de ferro que fecha os tigres é a mesma porta que as fecha com os tigres.

Nos tempos de minha infância, eu tinha um prazer cruel: pegar passarinhos. Fazia minhas próprias arapucas, punha fubá dentro e ficava escondido, esperando… O pobre passarinho vinha, atraído pelo fubá. Ia comendo, entrava na arapuca e pisava no poleiro. E era uma vez um passarinho voante. Cuidadosamente eu enfiava a mão na arapuca, pegava o passarinho e o colocava dentro de uma gaiola. O pássaro se lançava furiosamente contra os arames, batia as asas, crispava as garras e enfiava o bico entre os vãos. Na inútil tentativa de ganhar de novo o espaço, ficava ensanguentado… Sempre me lembro com tristeza da minha crueldade infantil.

Violento, o pássaro que luta contra os arames da gaiola? Ou violenta será a imóvel gaiola que o prende? Violentos, os adolescentes de periferia? Ou serão as escolas que são violentas? As escolas serão gaiolas? Vão me falar sobre a necessidade das escolas dizendo que os adolescentes de periferia precisam ser educados para melhorarem de vida. De acordo. É preciso que os adolescentes, que todos, tenham uma boa educação. Uma boa educação abre os caminhos de uma vida melhor. Mas eu pergunto: nossas escolas estão dando uma boa educação? O que é uma boa educação?

O que os burocratas pressupõem sem pensar é que os alunos ganham uma boa educação se aprendem os conteúdos dos programas oficiais. E, para testar a qualidade da educação, criam mecanismos, provas e avaliações, acrescidos dos novos exames elaborados pelo Ministério da Educação.

Mas será mesmo? Será que a aprendizagem dos programas oficiais se identifica com o ideal de uma boa educação? Você sabe o que é “dígrafo”? E os usos da partícula “se”? E o nome das enzimas que entram na digestão? E o sujeito da frase “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante”? Qual a utilidade da palavra “mesóclise”? Pobres professoras, também engaioladas… São obrigadas a ensinar o que os programas mandam, sabendo que é inútil. Isso é hábito velho das escolas. Bruno Bettelheim relata sua experiência com as escolas: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido que eu deveria aprender. E aprender à sua maneira”.

O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a vida. É o corpo que quer aprender para poder viver. É ele que dá as ordens. A inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver. Nietzsche dizia que ela, a inteligência, era “ferramenta” e “brinquedo” do corpo. Nisso se resume o programa educacional do corpo: aprender “ferramentas”, aprender “brinquedos”. “Ferramentas” são conhecimentos que nos permitem resolver os problemas vitais do dia-a-dia. “Brinquedos” são todas aquelas coisas que, não tendo nenhuma utilidade como ferramentas, dão prazer e alegria à alma.

Nessas duas palavras, ferramentas e brinquedos, está o resumo da educação. Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. Ferramentas me permitem voar pelos caminhos do mundo.

Brinquedos me permitem voar pelos caminhos da alma. Quem está aprendendo ferramentas e brinquedos, está aprendendo liberdade, não fica violento. Fica alegre, vendo as asas crescer… Assim todo professor, ao ensinar, teria de se perguntar: “Isso que vou ensinar, é ferramenta? É brinquedo?” Se não for, é melhor deixar de lado.

As estatísticas oficiais anunciam o aumento das escolas e o aumento dos alunos matriculados. Esses dados não me dizem nada. Não me dizem se são gaiolas ou asas. Mas eu sei que há professores que amam o voo dos seus alunos.

Há esperança…


______

– Rubem Alves, crônica “Gaiolas e asas”. Opinião/Folha de S.Paulo, 5 de dezembro de 2001.

Texto recomendado: A aula e o olhar curioso pela joaninha

Deixe seu comentário ou dúvidas.

Comentários

  1. Espetacular! Ah, quais os primeiros passos devo dar para convencer a escola que o meu filho estuda a "ser asas"? Escola pública estadual. Abraço!!! Rosa Maria, Minas Gerais.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Prezada Rosa Maria, você pode começar solicitando o PPP da escola de seu filho. Este documento deve falar em autonomia e protagonismo do aluno, deve falar em desenvolver o pensamento crítico, deve também falar em respeito a individualidade, entre outras coisas lindas. Se está escrito no PPP, deve ser colocado em prática. Em paralelo, você pode ler a LDB - Lei de Diretrizes e Bases. Se precisar de ajuda, volte a me escrever.

      Excluir

Postar um comentário